A propósito da Lei da Palmada Zero, mais uma lei-zero num país com sistema judiciário falido e instituições públicas desacreditadas, lembrei de um episódio que vivenciei anos atrás. Conto.
No final de 2006 passei um mês hospedado na casa de um parceiro comercial, numa capital nordestina, participando de um treinamento. Convivi com a família (pai, mãe e três filhos) aqueles 30 dias e vi uma criança de 5 anos infernizar a vida de todos com suas birras. Era irritante. A mãe, católica fervorosa, diretora de uma ONG de adoção, era adepta da exclusividade da conversa como instrumento de educação. A cada crise de birra da menina a mãe punha-se em ação: conversava, conversava, explicava, explicava, botava de castigo, sentadinha numa cadeira por 5 minutos. Não se passavam 2 minutos, a criança, irrequieta, suplicava para sair do castigo. “Só se você pedir desculpas para a mamãe e prometer que não vai fazer mais isso”, respondia a mãe. A criança, imediatamente, com aquela vozinha de cortar o coração, respondia: “Disculpa, mamã... eu num faço mais”. Pronto, fim do castigo. Mas aí, não demorava nem 5 minutos, a criança voltava a fazer a mesma coisa: teimosia e birra, implicância com os irmãos. Na hora do almoço, era um deus-nos-acuda. Uma hora derrubava os pratos da mesa, outra, virava a panela de feijão, ou tirava o pedaço de carne do prato do irmão, ou derrubava a jarra de suco. Exigia o lugar onde sentar, batia na mesa, gritava com os pais e os irmãos, esperneava, e por aí vai. Vocês sabem, com certeza já viram ou vivenciaram essas birras, aquela hora em que a criança pede pra apanhar, não sabem? (Ai, os sicólogos e pedagogos de carteirinha vão tirar meu couro, vão sim! Vão me prender por tutela antecipada! Calma, senhores, eu não tenho mais filhos pequenos!). Voltemos. A mãe, a essas alturas, diante de todo aquele desmantelo, estava já no limite. Já tinha falado todo aquele blá-blá-blá, gastado em vão sua verborreia. A menina, nem aí pra ela. Parece que não ouvia: entrava por um ouvido, saía pelo outro. Vocês sabem como é. A criança então corria da mãe para o pai (como elas sabem fazer esse jogo! Quem as ensinou?). A mãe, de longe, só olhava. O coitado do pai já sabia: tinha que dar apoio à mãe. Ele até que tentava: conversava, conversava, explicava, explicava, botava de castigo de novo. O processo se repetia “n” vezes ao logo do dia, todos os dias. Era um estresse quase insuportável. De vez em quando a criança se cansava e se aquietava. Mas, meia horinha depois, tudo de novo. E, assim, o dia inteiro. Uma sucessão de birra + sicologia burra + cadeirinha de castigo sem fim.
Certa noite, todos dormindo, estava eu no andar de baixo, sozinho, lendo. Vi o meu amigo descer as escadas. Sentou-se e perguntou: “Noto que você está incomodado com as birras da minha filha. O que você acha que podemos fazer?”. Levantei o rosto, olhei firme para ele, senti seu drama. “Aquilo ali é uma Bíblia, não é?”. “Sim”, disse ele. “É da minha esposa”. “É uma bíblia católica, certo?” (sendo eu evangélico, esse era um ponto importante). “Sim”. “Então, pegue-a e abra em Provérbios 22:15”. Ele abriu e leu: “A estultícia está ligada ao coração da criança, mas a vara da correção a afugentará dela”. “Amanhã, experimente umas palmadas e veja como ela reage” – disse a ele. “Não tenho coragem. Minha mulher me mataria”, respondeu. Eu expliquei que, na minha modesta opinião, o sábio Salomão escrevera esse e outros versículos nessa linha porque conhecia o coração humano. Um conhecimento milenar. Ele sabia o quanto uma criança pequena pode ser capaz de manipular seus pais, coloca-los um contra o outro e disputar poder com eles. Uma criança não tem as qualificadoras mentais apropriadas ao debate, à discussão. Não tem as categorias cognitivas para entender explicações. Para elas, tem que ser sim, sim, não, não. Tem que obedecer e pronto. O argumento básico é “Por que mamãe não quer”. Mais tarde as explicações corretas virão naturalmente. Foi assim há milhares de anos. Ninguém morreu por causa de uma palmada, um beliscão, um puxão de orelhas. Não é queimar, quebrar o braço, vergastar, queimar com ferro, jogar água quente, humilhar, baixar a lenha... nada disso. Isso aí é crime e o ECA, como está, já tem providências. Mas, quem foi pai de um birrento sabe muito bem que tem hora que a única linguagem que funciona é a da palmada, a da dor.
No dia seguinte meu amigo estava só. A esposa havia saído. A menininha começou sua rotina infernizadora. Lá vai ele, conversar. Conversa, conversa, conversa, explica, explica, explica... eu só olhando, de esguelha. Bota ela de castigo por 5 minutos. Nem 1 minuto se passa e... tudo de novo. De repente, plac, plac, plac! Três palmadas boas no bumbum! A menina ficou estupefata! Não chorou. Não fez nada. Apenas ficou olhando para ele, sem reação. “Papai falou, você não quis ouvir, não é? Agora vamos ver se você entende.”, disse ele. Foi uma manhã feliz, depois de dias! Quietinha, num canto, a criança, dez minutinhos depois, estava brincando com suas bonecas, na maior alegria. Mas quando a mãe chegou, kabruummmm! Ela correu, chorando e... “Mãe, papai me bateu, buáaaa, buáaaa, buáaaaa...” e foi aquele chororô. “Pai, você bateu nela? Você teve coragem? Não acredito!”. Pronto! O tempo fechou. Pais em conflito. E eu me sentido um estorvo.
Hoje meu amigo mora fora do Brasil com sua família. Outro dia vi pela webcam sua filha, hoje uma jovem adolescente, muito bonita. Não sei como ela está, não perguntei. Pareceu ser uma boa menina, obediente. Mas, pergunto, teria que ser daquele jeito? Umas boas palmadas teriam tornado a vida dessa família menos estressante e harmonizado a relação familiar com os irmãos. E não traria nenhuma consequência à vida adulta, como quase todos nós, filhos de uma geração que castigava, pode provar. Sou capaz de afirmar que não existe hoje um adulto que tenha sido disciplinado por seus pais, da maneira correta, que reclame ou tenha traumas. Não falo dos que foram espancados com cordas, fios, cinturões, pedaços de pau, queimados com água quente, com pontas de cigarros, machucados com alicates, furados com agulhas, etc.
Minha tese final é esta: bata na criança e converse com o adolescente. Quem tenta conversar com a criança vai acabar tentando inocuamente bater no adolescente. A conversa com a criança é importante e necessária, sempre no nível que ela pode entender. Acima desse nível o argumento é “por que papai ou mamãe não quer” e pronto. E se chegar o ponto – e quase sempre chega, na maioria dos casos – uma palmada, um puxão de orelhas, um cocorote não fará mal a ninguém. Há filhos de boa índole que nunca precisaram de palmada. Que maravilha! Mas há aqueles, que o sábio Salomão chama de insensatos, estultos, que serão facilmente postos nos trilhos com umas boas palmadas em acréscimo às explicações e conversas.
Alguns conselhos do sábio Salomão, retirados do livro de Provérbios, da Bíblia cristã, para encerrar:
13.24 O que retém a vara aborrece a seu filho, mas o que o ama, cedo, o disciplina.
17.21 O filho estulto é tristeza para o pai, e o pai do insensato não se alegra.
17.25 O filho insensato é tristeza para o pai e amargura para quem o deu à luz.
19.13 O filho insensato é a desgraça do pai...
19.18 Castiga a teu filho, enquanto há esperança, mas não te excedas a ponto de matá-lo.
29.17 Corrige o teu filho, e te dará descanso, dará delícias à tua alma.
Brincadeirinha velha essa minha de bulir com os Psicólogos, retirando o “P”. É que eu li um tempo atrás, não sei mais onde, que as consoantes mudas passaram a ser de pronúncia opcional – ops, ocional. Assim, não me chamem de inorante por usar essa oção.